“Sou de uma geração em que a ambiguidade sexual e a presença do conteúdo homoerótico era vivida por muitos artistas. Veja-se o próprio Bob Dylan, que na época não parecia nada andrógino nem atraente desse ponto de vista, e que, olhado hoje, era superandrógino, fazia charme de andrógino, era bonitinho, parecia uma menina. Eu sou parte dessa geração em que os ídolos são andróginos”, dizia-me Caetano Veloso em Outubro do ano passado, deixando-me a matutar naquilo. Aos 65 anos, sem nada para provar, estava a ser sincero quando, olhos nos olhos, admitiu que tinha perdido o narcisismo próprio de quem se sente uma beldade na flor da idade, não levando a mal a questão: “Quando tinha 23 anos aplicaram-lhe um teste psicológico cujo resultado final foi “homossexualismo latente; identificação feminina e identificação da figura da mulher”. Como vê estes resultados? Ele, que diz que responde a rigorosamente tudo o que lhe perguntam, não negou: “Reconheci-me um pouco neles mas ao mesmo tempo a minha vida prática não corroborava nem confirmava esse diagnóstico”. Delicado e sereno, não reservou a sua vida íntima, confidenciou-me que começou a namorar com a ex-esposa, Paulinha Lavigne, quando ela tinha 13 anos e que ela perdeu a virgindade no dia em que ele fazia 40, mas do que ele não gostou mesmo nada foi quando lhe lembrei que um jornal de S.Paulo tinha escrito que Caetano era assexuado. “Assexuado eu? Não. Nunca. Nem pensar. Deus me livre disso e dessa palavra. Jamais”. Calma Caetano. Desse jeito nervoso nem parece você.
sábado, 10 de maio de 2008
sábado, 3 de maio de 2008
Oxalá
Encontrei-me com Bana nas vésperas do seu primeiro concerto no Porto, em Julho de 1999 – comemorava então 50 anos de carreira e 40 LP’s gravados – e ultimamente a imagem daquele imponente senhor, de infinita bondade e porte de príncipe, tem-me assolado a memória. Recordo-me que durante as horas em que estivemos juntos não largou das mãos um lenço branco perfeitamente vincado com que limpou os olhos turvados pela emoção. “Nunca pensei nem quis ser um embaixador da música de Cabo Verde. Descobri que tinha o dom de cantar aos 12 anos e vou continuar a fazê-lo até morrer”, profetizou, olhar absorto em recordações, ele a brincar nas ruas de São Vicente, o calor do tempo em que uma prima dedilhava uma guitarra portuguesa sentada no beiral da sua porta, quando empurrava a cadeira de rodas de B.Leza que o chamava de touro. Na altura a sua voz não era apreciada, fez-me crer que ninguém gostava de o ouvir, que não se surpreendeu, quando chegou a Portugal, que não lhe tivessem dado o devido valor: “Fui-me cansando e já só pensava em abandonar esta vida”.
Um dia destes uma amiga em comum foi vê-lo ao hospital, contou-me que ele a recebeu com um sorriso do seu colossal tamanho, com uma ternura e respeito de fazer doer o coração. Mencionou que à sua volta estavam uns músicos cabo-verdianos em repetidas vénias de gratidão a que ele, baptizado Adriano Gonçalves, respondia com um sorriso, leves acenos, combalido mas moralmente elevado. Escuto a sua voz redentora, vislumbro o seu jeito imponente, sinto-lhe o coração debilitado e comovido. Oxalá volte a cantar.
Um dia destes uma amiga em comum foi vê-lo ao hospital, contou-me que ele a recebeu com um sorriso do seu colossal tamanho, com uma ternura e respeito de fazer doer o coração. Mencionou que à sua volta estavam uns músicos cabo-verdianos em repetidas vénias de gratidão a que ele, baptizado Adriano Gonçalves, respondia com um sorriso, leves acenos, combalido mas moralmente elevado. Escuto a sua voz redentora, vislumbro o seu jeito imponente, sinto-lhe o coração debilitado e comovido. Oxalá volte a cantar.
sábado, 26 de abril de 2008
Neuróticos?
Encontrei-me num hotel de Óbidos com a cantora brasileira Joanna, que no registo é Maria de Fátima, e passeei com ela por entre as patrimoniais muralhas da terra do chocolate. Enigmática, disse-me que às vezes é “frágil como as asas de um passarinho”, que facilmente rebenta num pranto, mas não acreditei. Confesso que a cantora não faz nada o meu género e, cá entre nós, tem qualquer coisa que assusta a maioria dos homens. Senti-me como que intimidado e nem ousei questioná-la sobre tendências sexuais ou feminismos. De “Pintura Íntima” só o nome do disco, o pai que é de Viseu, as luzes que diz semear por onde passa e a curiosa “Caravela de Prata” que só ela e Amália receberam. Conta rosários de fé e devoção a Nossa Senhora, agradece-lhe ter saído de casa ainda adolescente para “trabalhar à noite como garçonete e de dia em mais dois empregos”. Uma sonhadora que acredita que “a normalidade é uma ilusão”. O quê? “De perto, ninguém é normal. Todos temos vários lados, somos multifacetados, neuróticos. Somos todos neuróticos”. Atordoado com a sentença, ainda a ouvi dizer, meio pasmado: “Quando me deparo com a falta de civilidade ou se alguém desrespeita o meu trabalho, ponho a boca no trombone o mais alto possível para que todos os ouvidos estejam bem abertos para escutar as verdades. Aí eu digo o que penso, vomito, jorro para fora, expludo”. Deus nos livre.
sábado, 19 de abril de 2008
Suicídio
Há uns tempos fui a Braga entrevistar Adolfo Luxúria Canibal acompanhado pela manita Mirabelle – meia francesa e não conhecia os Mão Morta – que se revelou de imediato seduzida com o som e as letras da banda de culto mais antiga da música portuguesa. E disse: “Se na minha adolescência eu também tivesse gritado “quero morder-te as mãos”, ao longo dos anos provavelmente não teria mordido tantos desgraçados”. Lá no cimo, no Bom Jesus, o cantor foi tirar umas fotos na casa-de-banho e quando voltou não me surpreenderam os antagonismos entre Luxúria Canibal, o vocalista, e Morais Macedo, o jurista. O que me apanhou desprevenido foi a forma como atacou, sem rodeios, a Igreja e a terra em que vive, “onde há uma maledicência generalizada e uma entediante pasmaceira”, e o facto de nunca ter votado porque não se revê representado por outrem, “seja ele quem for”. Todavia, o que me avocou foi a forma como se referiu à morte como sendo “extraordinariamente atractiva, algo que nos enamora e nos alicia constantemente”. Referia-se às dores da alma, “as dores que fazem com que haja tantos suicídios entre os adolescentes”. E tu, Adolfo, já pensaste em te suicidar? “Pensei, é evidente. Até um dia em que, depois da ideia de suicídio ser em mim recorrente, perceber que a morte estava sempre à mão. Se a coisa corresse mal cometia o acto”. E como? “Para mim está sempre associado à pistola”. É este abraçar ilimitado de possibilidades, com derrapagens, fios da navalha e tudo o que isso tem de excitante e dramático, que fascina os que não desistem da fuga à normalidade.
sábado, 12 de abril de 2008
Emoções
Fafá de Belém beijou-me, exuberante, por entre sonoras gargalhadas, humor estrelado e a mesma imensidão de simpatia. Com fartos seios desviados do sutien, recebeu-me como sempre: “Meu querido Zé, que bom ver-te, ó pá”. Naquele dia estava com a pele mais aveludada e o génio todo lá, mas a memória dos seus ascendentes teimava em não se afastar. Falou-me da avó de Castelo de Paiva – que “representou a força da mulher, a independência e o matriarcado antimachista” – e contou-me que quando o pai faleceu entrou de rompante na sala do velório, pôs Frank Sinatra a cantar nas alturas e deixou toda a gente indignada. “As beatas sumiram na hora”, riu alto. No dia seguinte encontrei-a mais abatida. Confessou-me que estava “morrendo de saudades” do pai e que desde que ele a tinha deixado se sentia perdida. ‘Seu Fifi’ era para ela a expressão máxima do amor na Terra, dele herdou a sensibilidade que tanto a faz estremecer de dor como rir de prazer. Quase de seguida, com emoções em catadupa, entre mais um ataque de saudades e pranto, deixei que encostasse o peito ao meu, como se eu fosse o irmão que desejava ter tido, o que me fez pensar que é mais fácil esquecer as pessoas com quem rimos do que aquelas com quem chorámos. Acho que é por essas lágrimas que tenho tanto carinho por ela, guardando religiosamente uma fotografia em que estamos abraçados e com um sorriso do tamanho da felicidade possível.
sábado, 5 de abril de 2008
Boca santa
Um dia destes mandei uma mensagem a um amigo que estava com o Paulo Gonzo e, por brincadeira, perguntei-lhe como é que estava o Paulo…Ganza. Segundos depois recebi uma chamada do cantor dos “Jardins Proibidos” a, no seu jeito libertino, insurgir-se: “Com que então Paulo Ganza…Sabes muito bem que eu não gosto de ganzas…Essas coisas são para pobretanas, não para mim”. E riu-se. Enquanto falávamos, lembrei-me da primeira vez em que o vi em palco com os Go Graal Blues Band, o cabelo encaracolado, desgrenhado, encostado a uma trave do palco improvisado em cima de um tractor, eu adolescente, fascinado com a sua postura boémia e irreverente. A última vez que estive com ele, de seu nome Alberto Ferreira Paulo, dizia-me que se sente velho para o sexo, drogas e rock n’roll. Pura mentira. Estava cheio de genica e com a vocação de anedoteiro de sempre. “As pessoas seriam mais felizes se se olhassem ao espelho e se rissem delas próprias”, disse-me entre gargalhadas, marotas, depravadas. Um outro dia fui a uma das suas famosas festas, provavelmente o maior índice de VIP’s por metro quadrado, Cinha Jardim, Petit, Olavo Bilac, Lili Caneças, traços de rostos felizes, ele faustoso, a mão com um problema de pele a acariciar a careca. Às tantas abeirou-se dele uma bela donzela, deu-lhe um abraço apertado e exclamou, lânguida: “tu és o meu sex-symbol preferido”. E ele, gago, aquele ar de puto traquina: “ó filha, sabes, eu tenho uma boca santa”.
sábado, 29 de março de 2008
País da treta
Rui Veloso raramente atende o telemóvel mas quase sempre retorna a chamada. Ligou, disse-me que era fã destas minhas crónicas, que apreciava “a forma, directa e frontal,” como me referia aos artistas, “a coragem para não esconder a verdade”. Espero, retorqui, que quando escrever sobre ti mantenhas essa opinião. “Então e porque não manteria?” Lembrei-lhe que, há meia dúzia de anos, no 1º Festival de Blues de Gaia, escrevi que o André Indiana era “vaidoso e pedante” e que, no dia seguinte, fui abordado pelo jovem guitarrista quase em pranto e que ele, solidário, apertou-me a mão enviesada e exclamou: “não devias ter escrito aquilo”. O cantor de “Chico Fininho”, no seu jeito igualmente franco, clama do outro lado do telefone: “É pá, tu estavas certo. Esse gajo é mesmo arrogante”. Dias depois fui encontrá-lo nuns estúdios que tem em Belas, tocou-me uns acordes como só ele sabe, vi-o revoltado com “este país da treta, de gente hipócrita, medrosa e cobarde que nem para pedir o livro de reclamações num restaurante tem coragem porque isso pode implicar chatices”. A mancar, por causa de uma recente operação ao menisco, levou-me até ao jardim que beira a sua residência e, ao falarmos da forma como as rádios tratam os nossos artistas, ouvi-o afirmar, indignado: “É uma vergonha termos andado a mendigar uma lei para passar 25% de música portuguesa e mesmo assim sofrendo resistências. Por causa dessas coisas é que eu preferia ser espanhol ou inglês”.
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