sábado, 29 de março de 2008

País da treta

Rui Veloso raramente atende o telemóvel mas quase sempre retorna a chamada. Ligou, disse-me que era fã destas minhas crónicas, que apreciava “a forma, directa e frontal,” como me referia aos artistas, “a coragem para não esconder a verdade”. Espero, retorqui, que quando escrever sobre ti mantenhas essa opinião. “Então e porque não manteria?” Lembrei-lhe que, há meia dúzia de anos, no 1º Festival de Blues de Gaia, escrevi que o André Indiana era “vaidoso e pedante” e que, no dia seguinte, fui abordado pelo jovem guitarrista quase em pranto e que ele, solidário, apertou-me a mão enviesada e exclamou: “não devias ter escrito aquilo”. O cantor de “Chico Fininho”, no seu jeito igualmente franco, clama do outro lado do telefone: “É pá, tu estavas certo. Esse gajo é mesmo arrogante”. Dias depois fui encontrá-lo nuns estúdios que tem em Belas, tocou-me uns acordes como só ele sabe, vi-o revoltado com “este país da treta, de gente hipócrita, medrosa e cobarde que nem para pedir o livro de reclamações num restaurante tem coragem porque isso pode implicar chatices”. A mancar, por causa de uma recente operação ao menisco, levou-me até ao jardim que beira a sua residência e, ao falarmos da forma como as rádios tratam os nossos artistas, ouvi-o afirmar, indignado: “É uma vergonha termos andado a mendigar uma lei para passar 25% de música portuguesa e mesmo assim sofrendo resistências. Por causa dessas coisas é que eu preferia ser espanhol ou inglês”.

sábado, 22 de março de 2008

Vida privada

Sérgio Godinho não gosta que se fale da sua vida pessoal. “É pá, o que é que isso interessa?”, confrontou-me quando o entrevistei a propósito do disco “Nove e Meia no Maria Matos” que lançou em Janeiro.Respeitei-lhe a vontade, não o questionei sobre as tentativas de engate de que já foi alvo, nem as suas idas a Coimbra, nem a namorada que tem em São Silvestre, e muito menos o abordei para saber o que ia fazer à farmácia de São João do Campo, mas não pude deixar de lhe falar do facto de ter estado preso no Brasil. “Fui detido ainda no início da minha carreira, com os Living Theatre, acusado de subversão e posse de drogas. Fomos absolvidos das acusações antes do julgamento terminar e deram-nos ordem de expulsão”. Quando lá voltou nos anos 80 foi preso outra vez. “Mas fui absolvido de novo pelo Supremo Tribunal de Justiça”, contou, para logo a seguir considerar “uma enorme e feliz coincidência” o facto de na última vez que foi ao Rio de Janeiro ter encontrado os Da Weasel à porta de um restaurante. Sérgio também não gosta que se fale nisso mas é pai de três filhos e avô de uma menina ainda bebé, “assunto que vou desenvolvendo com prazer”, pedindo-me de novo, educadamente, para deixarmos de lado essas questões da vida privada. Mas Sérgio, qual a diferença entre a vida do criador e a sua criação? “É que já são 36 anos de uma carreira e 17 álbuns de canções”. Será isso mais importante que 63 anos de uma linda vida?

sábado, 15 de março de 2008

Fofoca

Fui o único jornalista a entrar nos camarins dos Babyshambles no Festival de Paredes de Coura do ano passado, o Pete Doherty parecendo um pastor de ovelhas, coberto com uma manta castanha e um chapéu de abas largas, os olhos esbugalhados, a suar. Por causa da ressaca. Ao confirmar-me que tinha vindo de comboio de Londres até ao Porto numa viagem que demorou 25 horas, deixando implícito que o tinha feito porque era mais fácil drogar-se do que no avião, senti que fazia parte de uma turma de paparazzos que não deixam o homem em paz. Na entrevista, de rara intimidade, confidenciou-me que acha os portugueses muito estranhos. E deu-me um exemplo: “Uma vez, em Lisboa, um fotógrafo andou horas atrás de mim. Às tantas, quando estava a negociar com um “dealer” aproximou-se e ordenou: “Não faças isso. Vai embora daqui antes que morras ou te matem”. Perguntei-lhe como é que reagiu. “Mandei-o lixar. Parecia um pastor de igreja a querer salvar um pecador por opção”. Percebi que me contava aquilo porque eu tinha conquistado a sua confiança. Enganei-o. Eu estava a ser apenas mais um que faz parte de uma seita que anda atrás dos famosos para lhes dissecar a vida até ao tutano. “Os jornalistas são um pesadelo”, disse-me, como se me confundisse com um fã. No dia seguinte lá estavam as suas intimidades escarrapachadas no CM, tim tim por tim tim, qual amizade qual quê, eu quis foi sacar-lhe umas coisas e dar ao nosso povo o que o nosso povo gosta: fofoca.

sábado, 8 de março de 2008

Justo e pecador

Faz uns quinze anos que me encontrei a primeira vez com o Vitorino. Entrei nos camarins do Europarque, em Santa Maria da Feira, com ele em frente ao espelho a aprumar a boina e a cofiar o bigode. Olhou na minha direcção e começou a insultar-me. Perguntou se eu era do jornal “Público”, não, então porquê, “porque se fosse expulsava-o já daqui”. Calma amigo, então o que é que se passa para estar tão desaforado, “escreveram umas coisas sobre mim no “Público” que eu não admito”. Ok, mas o que é que eu tenho a ver com isso, “não quero saber”, gritou-me aos ouvidos. Dei meia volta e sem me despedir ia para abandonar a sala, “não, não é caso para isso, não vá embora que eu dou-lhe a entrevista”. Fiquei com uma péssima opinião do cantor do Redondo e até me apanhei a pensar nele como “um quadrado” mas parece que me enganei.Um dia destes entrevistei-o e lembrei-lhe esse episódio: “Pagou o justo pelo pecador”, justificou-se. “Havia um jornalista, o Fernando Magalhães - que se suicidou - que, por sistema, tratava a gente mal. Até que a gente se cansou e de maneira que, quando ele aparecia nos concertos, não o deixávamos entrar. Coitado. Fartei-me de o expulsar”. Subimos juntos a ladeira da Rua da Imprensa Nacional, entrou na sua Renault 4 L e ao vê-lo partir não resisti a pensar que o Vitorino pode ter mudado muito mas mantém um toque revolucionário, fiel a Che Guevara, “a chamar os bois pelos nomes”.

sábado, 1 de março de 2008

Ser solidário

Fui um dia destes a casa de Zé Mário Branco, ele de chinelos de dedo, as unhas dos pés a precisarem de serem cortadas, cigarrilha na boca, os livros amontoados, à mão de semearem inspiração naquele senhor que a esposa considera preguiçoso para compor. Mais do que o dedilhar na guitarra tocou-me a sua coerência e o respeito por princípios que nunca perdem de vista o bem comum. Contou-me que recusou receber a Ordem da Liberdade porque não aceita distinções oficiais de um Estado que corporiza “a sociedade injusta em que vivemos”, nem foi à Expo’98 por considerar que “uma iniciativa daquelas foi um insulto aos pobres”. Ao contrário de muita gente por aí, Zé Mário não tem as convicções à venda, e quando lhe passam as mãos pelas costas desconfia. Ao ser assumidamente contra o sistema, naturalmente que o sistema não lhe dá muito espaço e ele acaba por ser vítima do nacional cinzentismo, “principal factor de repressão dos portugueses”. Ouvi-o a primeira vez a cantar “FMI” quando eu ainda era menino – ele a chorar, a apelar à mãe que o socorresse, a visceralmente gritar – e a canção a apelar em mim à revolução como uma questão de bom senso. Admiro-lhe o jeito radical e frontal de criar incómodos, de se tornar insuportável para alguns, de se dar mal com a fatuidade, a parvoíce e o irrisório. Zé Mário Branco é “improvavelmente feliz” porque para ele “a felicidade só existe se generalizada a todos os seres humanos que são meus irmãos nesta aventura”.